Kult – Um RPG de Horror Sueco de Arrepiar.

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Quando “Kult” foi lançado, em 1991, pela editora sueca Äventyrsspel, o RPG no Brasil estava começando a ficar forte no mercado nacional e a ter várias empresas interessadas em trazer para terras tupiniquins os títulos importados mais conhecidos, como Dungeons&Dragons, GURPS e Vampire: The Masquerade, por isso, e talvez por ter sido feito na Suécia, “Kult” inicialmente passou desapercebido do grande público e continuaria se não houvesse acontecido algo que o fez entrar em uma polêmica. Um garoto de 15 anos foi morto na pequena cidade sueca de Bjuv por dois amigos da mesma idade que se reuniam para jogar Kult. Isso deu início a uma discussão no parlamento sueco sobre o fim de financiamento estatal para publicações de RPG no país. Em 1994, na Noruega, um jornal local, Tønsbergs Blad, associou o jogo com o desaparecimento do jovem Andreas Hammer depois que descobriu que o jovem se encontrava para jogar RPG com os amigos e que seu desaparecimento aconteceu após terem jogado uma sessão de “Kult”. Ainda na Suécia em 1996 um jovem de 16 anos se suicidou com um tiro após, segundo dizem, ter lido “Kult”. Pronto, a associação de “Kult” com violência foi feita, mas nada foi comprovado, como sempre.

O jogo acabou aparecendo nos EUA em 1993 e foi publicado pela Metropolis Ltd. Dali o jogo começou a se espalhar pelo mundo, impulsionado pela polêmica na qual ele se envolveu na Suécia até chegar ao Brasil. Na verdade pouquíssimas cópias chegaram por aqui. Eu tive a felicidade de conseguir minha edição porque na época, 1995, trabalhava na extinta Livraria Capixaba atuando como mestre de RPG nos finais de semana no também extinto “Beholder RPG Club“. Quando o livro chegou o dono da livraria, preocupado com as imagens e o teor do livro, me deu para avaliar. No final ele acabou me dando o livro porque achou que seria inapropriado vender para os jovens que frequentavam o clube, acostumados com cenários de fantasia medieval.  Que bom para mim!

Capa da 1ª edição publicada nos EUA.

Mas sobre o quê é o jogo? O mundo no qual vivemos é uma mentira, Na verdade ele é uma prisão. A realidade que nos cerca foi construída por um ser chamado Demiurgo. Ele não deseja que a humanidade ascenda e recupere os poderes divinos que uma vez já tivemos (sim na ambientação do jogo todo ser humano um dia já foi uma divindade) e construiu essa prisão para que nos esqueçamos de quem já fomos um dia. Quem achou a premissa parecida com “Matrix” não está ficando louco. Aqui como no filme dos irmãos Wachowski todos estamos dormentes com a verdade por trás da realidade, e quem descobre a verdade corre perigo, afinal o Demiurgo não é o único que nos quer manter preso. Sua contra-parte, Astaroth, também nos quer cativo, e para ajudar a ambos eles mantêm criaturas que seriam nossos carcereiros. Do lado do Demiurgo temos os Arcontes, e do lado de Astaroth temos os Anjos da Morte. Ambos os lados possuem uma escala de hierarquia onde dependendo de sua posição a criatura tem certas obrigações na missão de nos manter cativos. As cidades que vivemos e construímos nada mais são do que reflexo em nossas memórias da cidade original de onde todos viemos, Metrópolis (para quem me conheceu na época do “Metropolis RPG Club” na UFES sabe agora de onde vem o nome do grupo que jogava por lá aos sábados) que é interligada com o Inferno e todas as suas camadas. É para lá que vão as almas dos que morreram e descobriram a verdade sobre nossa realidade. Eles são torturados para que se esqueçam de tudo antes de serem enviados de volta a Terra, reencarnando em outro corpo e começando o ciclo da prisão todo outra vez. Como se pode observar o jogo é cheio de influências religiosas e agnósticas e isso acabou despertando outra polêmica, dessa vez com grupos religiosos que achavam a temática do jogo muito pesada para jovens.

No jogo lugares assombrados, livros ocultos, artefatos místicos, podem criar uma brecha na realidade e nos mostrar a verdade. São como falhas na programação (“Matrix” outra vez) e que atraem nossos carcereiros para impedir que saibamos a verdade. Lidar com essas coisas pode nos levar a morte ou a loucura. Quanto mais se sabe sobre a verdade mais a balança mental do personagem pode desequilibrar. O personagem pode se tornar insano, ou ter momentos de insanidade, cometendo crimes e se arrependendo depois. Ele pode atrair a atenção das criaturas que nos rodeiam, desejando e tramando para que ele morra para puni-lo em outras esferas de realidade.

Uma das páginas que contem detalhes sobre as armas que se podem usar no jogo.

Uma das páginas que contem detalhes sobre as armas que se podem usar no jogo.

O livro vem com tudo o que o mestre precisa para começar a jogar, inclusive com regras para ter entre os personagens dos jogadores um vampiro ou lobisomem (isso mesmo!), caso o grupo queira. Mas o legal mesmo, pelo menos para mim, é jogar como um policial, ou médico, ou jornalista, que aos poucos vai descobrindo sobre a verdade depois de se deparar com um mistério e ter que lidar com isso. No livro existem regras para perseguições de carro e de helicópteros (!), lista completa de armas de fogo, lista de artes marciais, com seus golpes e movimentos, uso de drogas das mais variadas possíveis e seus efeitos alucinógenos (usar drogas no jogo nos faz ver a verdade por trás do véu ou são necessárias para se fazer magia), descrição de criaturas de outras dimensões, como o Inferno, o mundo dos Sonhos, etc. e um sistema de magia completo e arrepiante.

A magia em Kult não é de forma alguma fantástica e romântica. O mago pode fazer magia de um dos cinco caminhos de conhecimento existentes: Morte, Sonho, Loucura, Paixão e Tempo-Espaço. Ela foi feita para parecer ser possível realmente se fazer magia, por isso ela trás como seus elementos de regras:

  • o tempo de duração necessário para se fazer a magia, que nunca é instantâneo (então esquece daquele ligthning bolt que você lançou na dungeon na sua sessão de fantasia medieval em um piscar de olhos) e que pode chegar até 48 horas de invocação(!);
  • os componentes necessários para se fazer a magia, como velas, espelhos, e até sacrifícios de animais;
  • custo de resistência do personagem (que pode desmaiar no processo);
  • nível de sucesso necessário (quanto mais poderosa for a magia mais alto deve ser o sucesso para a magia funcionar);
  • e até mesmo descrição precisa dos gestos e das palavras (muitas em latim) necessárias para ela acontecer! Preciso falar mais porque o jogo tem tanta polêmica envolvendo seu nome?

    Investigador Particular.

    Investigador Particular.

As regras de construção de personagem começam com a escolha de um arquétipo (agente secreto, investigador particular, membro de gangue) que dá um pacote de skills os quais o jogador terá que escolher para seu personagem e distribuir entre eles dois com o nível 18, dois com o nível 15 e oito com nível 10; o rolamento de 1d5 para saber quantas vantagens e desvantagens o personagem terá; e por fim sua pontuação nas habilidades (atributos) que são Agilidade, Força, Constituição, Beleza, Inteligência, Carisma, Percepção e Educação. A pontuação das habilidades pode ser feita de duas maneiras: ou o jogador distribui 100 pontos entre elas, respeitando que nenhuma pode ficar acima de 18 (ou pagará multa), ou rolando dois 2d10 para cada uma das habilidades e anotando os resultados.

Os testes são feitos sempre com um D20, onde o resultado do rolamento é comparado com a habilidade ou a skill usada no teste. Quanto maior a diferença a favor do jogador melhor. Exemplo: o jogador tenta decifrar um livro que ele encontrou em uma cena do crime com seu conhecimento sobre numerologia. Ele tem 15 nesse skill e rola um 10. A diferença foi de apenas 5 a favor do jogar, o que é um resultado aceitável, e por isso o Mestre poderá dar poucas informações a ele.

O jogo vale muito a pena e é um dos meus favoritos. Recentemente mestrei uma aventura de “Abismo Inifinito” no qual coloquei alguns elementos de Kult para ver a reação dos jogadores e foi muito positiva. Mas vale o aviso: o jogo não é aconselhável para pessoas que se sentem desconfortáveis com os assuntos tratados nele e para grupos menos experientes. Ele é mais aconselhável para a galera que gosta de um jogo mais sério, com uma atmosfera mais tensa e cheia de mistérios, porque aí o bicho pega e a sessão empolga. Realmente é de colocar medo. Se você acha “Call of Cthulhu” pesado espere até jogar uma sessão de “Kult”.

images (6)Em 2001 uma nova edição de “Kult” foi lançada, dessa vez pela Paradox Games, mas novamente pouquíssimas unidades chegaram no Brasil. Além do livro básico foram lançadas alguns suplementos, inclusive muitos feitos pelos fãs e disponibilizados de graça na internet. Visite “The Last Circle” e confira. Ou então neste Fórum, que tem cenários, aventuras e romances para deixar mestres e jogadores no clima.

Para aqueles que já possuem o jogo deixo o link para uma aventura completa de “Kult” que eu já joguei e achei bem legal: Et in Arcadia Ego.

Agora deixa eu ir embora antes que o Demiurgo mande seus agentes atrás de mim, e eu tenha que fazer uma magia de proteção contra eles!

17 pensamentos sobre “Kult – Um RPG de Horror Sueco de Arrepiar.

    • Mauro, obrigado por ter gostado do artigo. Tenta achar mesmo porque o jogo é muito legal e tem um cenário muito bem construído. Uma sessão de Kult jogada por um grupo maduro é uma experiência inesquecível.

  1. nunca joguei um rpg de papel, tenho uma noção apenas básica sobre eles. Tem algum post aqui no site que me explique mais sobre a mecânia, etc?

    • Olá, amigo. Na verdade as mecânicas de cada RPG vem com seu conjunto de regras, e portanto é preciso ter um dos livros em mão. Basicamente o que acontece é que um dos jogadores na mesa é o mestre, aquele que vai contar a história da qual os personagens dos demais jogadores irão participar. Para definir se os personagens conseguem ou não os jogadores devem seguir as regras (cada RPG tem conjunto de regras diferentes) e o mestre descrever o que aconteceu. Basicamente é isso. Espero te ajudado.

  2. Oi André. Gostaria de dizer que acho que no trecho onde você diz “jogo é cheio de influências religiosas e agnósticas” acredito que a palavra correta no lugar de “Agnóstica” seria “Gnóstica”.
    Não quero ser chato, apenas é uma troca que gera confusão e também pode descartar infelizmente o que o termo “gnóstico” traz e o que pode levar para o jogo.

    • Fala, Igor. Na verdade é agnóstico mesmo, ou seja, que os fenômenos sobrenaturais são inacessíveis à compreensão humana. Nesse sentido o jogo explora o fato de que o sobrenatural no jogo pode levar os personagens a loucura, fazendo com que sua balança mental desequilibre e ele acabe com alguns dos problemas mentais descritos no livro. Seja “chato” sempre que quiser, afinal o blog é pra nós discutirmos esses assuntos. Um grande abraço.

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