Contando A História Certa.

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RPG é um hobby, um jogo, de contar histórias. Existem vários estilos de histórias para serem contadas: horror, aventura, drama, sobrevivência, intriga, investigação, etc. Geralmente os sistemas e cenários são criados pensando nesses estilos, e seus conjuntos de regras são voltados para facilitar a contar histórias assim. Muitas vezes observo histórias prontas, ou de narradores que vejo na internet, fugindo do tema proposto pelo cenário. Isso não significa que você não possa contar uma história com um estilo diferente, mas será que estamos contando a história certa para aquele determinado cenário ou sistema? Vamos comentar sobre isso neste artigo.

ESTILOS DE HISTÓRIAS

Antes de mais nada quero deixar claro o que sempre digo quando escrevo artigos como estes, que procuram dar dicas para outros narradores, de que não existe certo ou errado no modo de se jogar RPG. O intuito do artigo é apenas debater nosso hobby e ajudar narradores e jogadores a terem uma experiência diferente em suas sessões baseado em minha percepção sobre o jogo. RPG é uma atividade lúdica para ser praticada em grupo e que tenha diversão. Se tá divertido para o grupo, tá valendo, independente do que digo.

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Cada sistema ou cenário tem um estilo próprio de história para se contar. Em Chamado de Cthulhu, publicado no Brasil atualmente pela New Order Editora, as histórias são de horror cósmico com muita investigação e mistérios para serem descobertos. Os investigadores se veem envolvidos em segredos sobrenaturais que irão levá-los a loucura e talvez a morte, mas o fazem para salvar a humanidade diante de um horror indescritível. Em Lobisomem: O Apocalipse as histórias são de horror selvagem, onde guerreiros de Gaia lutam uma guerra que já está perdida, portanto são histórias de sacrifício, de perdas e angústia, onde o clima das histórias devem ser de tentar impedir o inevitável, e por isso a fúria que toma conta dos personagens. D&D é chamado de “sistema de porradeira”, porque as histórias são sobre entrar em uma masmorra, matar tudo que tem lá dentro e pegar os tesouros, mas na verdade são histórias sobre heroísmo e bravura de aventureiros que colocam suas vidas em risco em busca de glória, reconhecimento, ou apenas riqueza, entrando em masmorras e catacumbas para derrotar criaturas que ameaçam a vida dos habitantes de uma região do reino. Mago: O Despertar é sobre histórias de mistérios que precisam ser revelados, sobre segredos que precisam ser decifrados para se alcançar a ascensão e chegar ao Mundo Superno. São histórias sobre misticismo e alta magia, onde um mundo invisível nos cerca e somente o mago é capaz de vê-lo e tocá-lo, e para isso irá enfrentar o sobrenatural e colocar sua arrogância em teste. Para ascender precisa ser humilde e compreender o mundo a sua volta.

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As mecânicas de cada cenário são pensadas visando justamente nas histórias que o cenário pede. Em Chamado de Cthulhu a Sanidade do personagem é um fator importante, e descobrir verdades que deveriam se manter ocultas do homem o levam a perder pontos nessa característica. Por isso histórias de investigação com cenas que testem a sanidade do personagem são mais importante do que de combate. Já em D&D o dano que cada personagem provoca e a capacidade dele absorver dano são mais valorizados, e portanto cenas de combate são preferidas. A nova edição de Vampiro: A Máscara adicionou dados de fome a mecânica do jogo porque manter a humanidade em uma crônica de Vampiro é importante, e sucumbir a Besta é um passo para perder o personagem. Em Apocalypse World, lançado recentemente pela Secular Games no Brasil, os personagens possuem Movimentos (Ações) baseados nos arquétipos de cada um deles. Eles dão dicas para o narrador sobre coisas que devem acontecer na história, para forçar o personagem a testar esses movimentos, além de possuírem um movimento especial que lhes dão bônus quando fazem sexo com outro personagem. Isso tem que acontecer? Não necessariamente, fica a cargo do grupo de jogo e do narrador, mas o sistema e o cenário foi construído pensando nisso, então ter essas situações é melhor ter do que não tê-las. Isso não quer dizer que o narrador não pode contar histórias diferentes, mas talvez não caia tão bem quanto o que foi proposto pelos criadores dos cenários.

NÃO SEJA PREGUIÇOSO

Uma coisa que me incomodou bastante recentemente, e me motivou a escrever este artigo, são os exemplos de aventuras que tenho visto sobre a 5ª edição de Vampiro: A Máscara. O cenário do jogo é descrito como horror pessoal, com os personagens sendo vampiros que precisam se esconder no meio da sociedade humana por serem monstros, predadores, que precisam se alimentar dos vivos para se manterem imortais. Quando ele se recusa a fazer isso a Besta Interior toma controle do personagem e o obriga a fazer coisas terríveis. Esse deveria ser o foco das histórias: o horror de ser uma criatura dos mitos e lendas confrontada diariamente com o desejo por sangue dos vivos, vivendo dia a dia em uma sociedade onde criaturas poderosas jogam um jogo perigoso de poder e morte. Mas o que vejo na maior parte das aventuras propostas, inclusive aventuras oficiais, para introduzir novos jogadores no cenário é investigação de assassinatos. Como assim? Histórias de investigação ficam melhor para Chamado do Cthulhu, o qual seus personagens não por acaso são chamados de investigadores.

Investigar assassinatos, de quem quer que seja, não é prioridade para vampiros no cenário do jogo. Me deixa aborrecido e entediado quando vejo aquela velha e preguiçosa premissa quando um vampiro mais velho chega para o grupo de neófitos e diz que o príncipe da cidade convoca os personagens para investigar uma série de assassinatos. Fala sério! Parece aquela premissa horrorosa de D&D que começa com os aventureiros na taverna e chega alguém dizendo que o Rei está contratando interessados em matar um dragão que está em uma masmorra. Chato, chato, chato.

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Isso não quer dizer que o narrador não possa fazer uma aventura assim, onde investigação de assassinatos é o foco da história, ou mesmo de toda uma campanha, mas deve-se fazer de maneira diferente do que vejo por aí. O primeiro passo é deixar isso bem claro para os jogadores, para que eles não façam personagens desconectados do que a aventura pede, nem sem as perícias necessárias para tal missão. Nem tampouco frustrados por jogar algo diferente do que imaginavam sobre um cenário de horror. Um dos jogadores decide fazer um Ventrue que durante a vida foi um playboyzinho, sem nunca ter trabalhado e era sustentado pelo pai. Outra jogadora faz uma Toreadora que quando viva era bailarina clássica. E por fim outro jogador faz um Tremere que era um estudante universitário rato de biblioteca. Aí começa a sessão e o narrador diz que o Príncipe está convocando esse grupo improvável para investigar assassinatos. Cara, não sei se eram a melhor escolha e com certeza tem gente na cidade mais capacitada. Vamos ver como podemos fazer diferente, sem ser com personagens completamente desconectados com o que pede a história.

O narrador deve informar antecipadamente para os jogadores qual será o tema da aventura. Sendo de investigação de assassinatos ele sugere que os jogadores criem um Círculo Vehme de Vampiros, ou seja, vampiros designados a trabalhar com o Xerife da cidade para proteger a Máscara e explica que essa série de assassinatos está chamando a atenção da mídia local devido a elementos sobrenaturais em torno deles (o narrador define quais). Os jogadores agora sabem do que tipo de personagem precisam fazer para este tipo de história. Um jogador faz um Nosferatu que quando vivo era um detetive particular que possui contato com um jornalista investigativo. Outro jogador faz um Gangrel que decidiu se manter na Camarilla, apesar do seu clã ter abandonado a seita, que quando vivo era um PM e tem contato com um policial civil, e por último uma jogadora faz uma Malkaviana que quando viva era uma médica, talvez psiquiatra, o que pode ser útil para investigar o modus operandi do assassino. Os crimes estão incomodando a Primigênie, por chamar a atenção da imprensa, que conclama o Príncipe que tome uma providência. Este chama o Xerife da cidade e lhe dá ordem que descubra quem está por trás dos assassinatos e caso seja um vampiro trazê-lo para ser julgado pelos membros. Nada disso precisa ser narrado no início. Os jogadores não precisam presenciar nenhuma dessas cenas, já que eles não pertencem a este nível de poder na sociedade dos vampiros da cidade, mas quando começar a sessão os jogadores serão informados sobre tudo isso pelo Xerife, através de uma longa cena onde ele explica um pouco para os jogadores sobre a política na cidade e capacita os personagens sobre o objetivo da missão deles na aventura. Eles não serão contratados, nem convocados, apenas precisam cumprir com a obrigação do Círculo de Vampiros proposto no início da sessão. Para dar aquela sensação de horror pessoal o narrador pode pegar o Mapa de Relacionamentos feito pelo grupo de jogadores e escolher o Senhor de um deles como o assassino em série (talvez o Senhor da Malkaviana) e uma das vítimas durante a sessão poderia ser a Touchstone de um outro  jogador (talvez do Gangrel). Pronto, agora o narrador tem a aventura com investigação e assassinatos como ele queria e o cenário tem o horror pessoal e conflitos entre os personagens, como pedido, já que eles serão confrontados com seus sentimentos em relação aos envolvidos na investigação.

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Em um cenário como D&D os personagens não precisam estar na taverna, nem serem contratados pelo Rei, para ter início a aventura. O Paladino do grupo pode ter recebido uma revelação da divindade a qual ele venera em sonhos, ou em uma visão, sobre um perigo iminente para todo o reino, e devido a descrença dos demais membros de sua ordem sobre a visão dele, já que ele não é o que ocupa posição mais alta na sua ordem, decide vagar pelo reino reunindo outros aventureiros que queiram ir com ele para impedir essa ameaça. Um ladino pode ter interesse devido a promessa de riqueza, um mago pode ser seduzido pelo desejo de conhecimento mágico e sobrenatural, e um guerreiro pode ser convencido pela pela busca por glória e desejo de aventura. Pronto, teríamos todo uma interpretação, toda uma sessão envolvendo testes sociais e uma busca por estes aventureiros, e um motivo melhor pra começar a aventura, antes do início da “porradeira” quando entrarem na masmorra.

CONCLUSÃO

Contar a história certa e respeitar o que pede o cenário é fundamental para o sucesso da sessão de jogo e manter o interesse dos jogadores nela, afinal não há nada mais frustante para o jogador do que perceber que seu personagem não consegue interagir com o cenário e a aventura porquê pensou em uma coisa e o narrador em outra. Pra isso é importante que o narrador conheça os jogadores e o estilo de aventura eles gostam. Eles gostam de combate? Gostam de combate social? Intriga? Mistério? A resposta para essas perguntas irá levar ao sistema e cenário ideal para que o narrador possa contar a história certa para seu grupo.

5 pensamentos sobre “Contando A História Certa.

  1. É como comprar entradas para um filme de ação e assistir um drama. Parabéns pelo artigo: você atingiu o raro equilíbrio entre orientar e entreter. Já aguardando o próximo.

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